O
tamanho da fragilidade da sociedade brasileira diante do coronavírus
é o tamanho da sua crise do trabalho.
Os
momentos de crise sempre evidenciam as questões latentes nas
sociedades, elevando ao absurdo nossos problemas e suas
complexidades.
Em
uma pandemia, não surpreende que uma dessas questões seja
exatamente o trabalho: central em relação ao convívio humano e às
construções sociais, é sobre o trabalho (e, consequentemente,
sobre o não-trabalho) que pesam questões relevantes. O drama que
vivemos faz pensar os limites da medida de saúde pública
consistente no isolamento e na quarentena se, para grande parte dos
trabalhadores, a possibilidade de preservar a saúde é um luxo não
“concedido” pelos seus empregadores.
Em
um mercado de trabalho forjado a partir de raízes escravocratas e
que delas não se desprendeu, fazendo com que a tutela pública da
regulação do trabalho alcance, com eficácia desigual e
estratificada em termos de gênero e raça, diferentes grupos de
trabalhadores, as notícias sobre empregadas domésticas não
contaminadas servindo empregadores comprovadamente contaminados pode
até nos aviltar, mas não surpreende.
A
ausência de previsão legal para um fenômeno tão excepcional (e a
recém editada Lei nº 13.979/2020 fala menos do que seria necessário
sobre as relações de trabalho sob o coronavírus) permite que
diversas interpretações e leituras do ordenamento jurídico sejam
colocadas na mesa para administrar a situação, sendo muitas delas
arbitrárias e pouco razoáveis.
De
quem é a responsabilidade pelo não trabalho em face da suspeita de
contaminação do próprio trabalhador ou de outro trabalhador no
ambiente de trabalho? De quem é a responsabilidade e o ônus da
ausência de prestação de serviços se o trabalhador efetivamente
testa positivo para o coronavírus? Quem arca com a perda financeira
do não trabalho quando esse decorre não da contaminação do
trabalhador ou de alguém no seu ambiente de trabalho, mas de um
familiar idoso ou criança que não pode ser deixado sozinho na
quarentena?
As
perguntas colocadas para o Direito do Trabalho nesse momento estão
sendo respondidas a partir dos conceitos, valores e matrizes
ideológicas que permeiam a nossa ordem jurídica. Não haveria
dúvida em responder, a partir da Constituição de 1988, do teor do
art. 2º da CLT e do que dizem os instrumentos internacionais de
direitos humanos trabalhistas, que é o empregador quem arca com os
riscos da atividade econômica ou que ao menos os administra antes
que o Poder Público construa caminhos coletivos para o a solução
da crise.
Entretanto,
tanto quanto esse olhar, recairão sobre o Direito do Trabalho, nesse
singular momento, os olhares daqueles que só a partir de 2013 (com a
Emenda Constitucional nº 72/2013) pensaram no trabalho doméstico em
condições de igualdade com relação aos demais trabalhadores e que
se acomodam, confortavelmente, na matriz escravocrata do trabalho
reprodutivo desempenhado pelas mesmas mulheres negras que outrora o
faziam na escravidão.
Também
recairão sobre o Direito do Trabalho os olhares daqueles que
entendem que o grande vilão das nossa condição de dependência
econômica e do nosso subdesenvolvimento é o trabalhador, que apenas
se favorece da generosa criação de empregos por parte do sofrido
empresariado e não assume riscos, nem mesmo o de ser manter vivo
numa pandemia; por quem entende que o trabalho feminino é mais caro
que o masculino por força da gravidez e da licença maternidade,
ignorando todo o trabalho não pago exercido por mulheres em seus
lares (na guerra, na convalescença, na normalidade e na crise) e o
quanto isso as vulnerabiliza na economia do tempo, na rotatividade no
trabalho e na progressão salarial.
O
discurso neoliberal, que artificialmente quer ignorar as condições
sociais impostas a cada grupo por suas trajetórias históricas e
seus marcadores de classe, raça e gênero, atribuindo a quem vive do
trabalho uma pesada responsabilidade de “bem-suceder” em uma
sociedade desigual, vê sua própria racionalidade de calças curtas:
não é possível sobreviver ao coronavírus individualmente; não é
possível fazê-lo coletivamente sem compromisso forte do Estado; não
é possível sacrificar os mais frágeis nem mesmo por cínica
indiferença, porque a exposição dos vulneráveis é a exposição
de toda a sociedade.
E
o que nos resta, então, além de um reforço da atuação estatal em
matéria de saúde pública? A viabilidade das medidas de prevenção
à generalização do contágio se deita necessariamente numa tela
pública de proteção social chamada emprego, justamente aquele tão
combatido pelo discurso da reforma trabalhista, pelas “novas”
tecnologias e plataformas de recrutamento do trabalho humano, pelo
disseminado discurso do empreendedorismo.
É
ele, o emprego, que permite que pessoas fiquem em casa, sendo
remuneradas e fazendo uso da tecnologia para submeter-se à direção
empresarial remotamente. É justamente ele que assegurará que os
contaminados ou suspeitos de contaminação tenham faltas
justificadas (com remuneração e repouso) para não replicar o
contágio comunitariamente. É ele que vai assegurar eventual acesso
ao sistema previdenciário, se os afastamentos pela doença se
prolongarem para além de 15 dias.
E
emprego protegido é exatamente o que falta ao Brasil. A taxa de
informalidade atinge hoje 41% da população, entre os quais se
incluem trabalhadores por conta própria, que, essencialmente, seja
por força de relações empregatícias fraudulentas/disfarçadas,
seja pelo fato de ganharem a vida por conta própria, encontram-se
desamparados de qualquer vínculo jurídico que garanta seus
afastamentos por razões sociais ou de saúde, não acessando, na
grande maioria dos casos, sistemas de proteção social básicos como
o FGTS e o INSS.
Eu
me refiro aos vendedores ambulantes, “flanelinhas”, trabalhadoras
domésticas diaristas, manicures, motoristas e entregadores de
aplicativos, cujo rendimento diário depende do trabalho e cujas
ausências ao serviço, justificadas ou injustificadas, representam
imediato prejuízo financeiro. 25 milhões de brasileiros se
encontram nessa condição. Alijados do Direito do Trabalho, o custo
para que essas pessoas adiram a recomendações de saúde pública
reputadas essenciais pelas autoridades é o seu próprio sustento e
sobrevivência.
Estamos
falando dos nossos “ganhadores”: pessoas, predominantemente
negras, que persistiram, desde o pós-escravidão, engajadas no
trabalho informal por meio da atividade de ganho, porque não foram
absorvidas pelas formas juridicamente tuteladas de trabalho nem foram
inseridas socialmente de forma satisfatória para que pudessem a elas
se habilitar. Esse segmento estrutural do nosso mercado de trabalho
tem sido estudado pela literatura recente, sobretudo pelos estudos
raciais, não como figura acidental nos momentos de crise, mas como
marcador central do nosso mercado de trabalho que, em momentos de
crise e em função do discurso neoliberal, tende a crescer,
“engolindo” fatias do mercado de trabalho formal.
Algumas
campanhas nas redes sociais tem fomentado que aqueles que contratam
habitualmente os serviços desses sujeitos, por solidariedade,
realizem o pagamento e dispensem o trabalho (e por consequência), o
deslocamento urbano dessas pessoas.
Também
algumas plataformas de aplicativos digitais, voluntariamente, tem
sugerido uma “assistência financeira” aos trabalhadores
quem não reconhecem como empregados (!) durante os períodos de
afastamento por acometimento do coronavírus, garantindo aos
consumidores que esses serão forçadamente desligados da plataforma
se contaminados…
As
contradições da nossa sociedade desigual se evidenciam quando o que
é um autocuidado fundamental e uma conduta comunitária imperativa
em uma pandemia se revela para uns como direito, para outros como
favor, para outros como risco à sua subsistência.
O
tamanho da fragilidade da sociedade brasileira diante do coronavírus
é o tamanho da sua crise do trabalho. A solidariedade sempre é bem
vinda e apenas sua lógica insurgente poderá nos fazer atravessar
esse cenário.
Entretanto,
as vísceras expostas do nosso mercado de trabalho e do desfazimento
de nossa estrutura de regulação pública trabalhista requerem que a
radicalização dessa solidariedade nos conduza, para além de
sobreviver a essa crise, a repensar e reivindicar novas políticas de
promoção do trabalho digno e protegido face ao iminente colapso da
economia brasileira.
RENATA
QUEIROZ DUTRA –
professora da Universidade de Brasília.
Questões
para o aluno responder a partir da reflexão do texto.
- Quem trabalha para conter a crise e como trabalha?
- Qual será a sorte da classe que vive do trabalho quando não pode trabalhar?
- Como equacionamos as demandas produtivas diante das restrições ao trabalho vivo?
Um comentário:
Ok..
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